Uma janela com vista para o chão

Ligia Saramago

RJ, Brasil

22°58'38" oeste e 43°14'1" sul.

Da janela de um apartamento no Rio de Janeiro, vê-se um chão vertical que brota da mata forçada a recuar. Impossível voltar a ver e caminhar como antes.

Publicado em
23/02/2023

Atualizado em
23/02/2023

Uma vez, vi um pequeno inseto, vindo da mata,

caminhando sobre as páginas abertas de um livro difícil: 

com suas patinhas leves, ele se movia apressado sobre uma escritura indecifrável,

inconcebivelmente além de sua capacidade de compreender. 

E me pergunto se, no fundo, não pisamos em uma escritura ainda velada para nós.

 

Da janela do quarto se vê a mata, o esmeralda rendilhado de luz, a vista para a floresta. Uma ilusão inicial se instala pelo enquadramento da janela, que quase nos convence de que o cenário é doméstico, que é nossa casa, nosso terreno. Há um corte abrupto entre cidade e floresta, entre chão horizontal e aclive, ou entre o chão sob nossos pés e aquele que se ergue vertical diante dos nossos olhos. Nas beiradas da mata, onde a encosta recortada como borda explícita encosta na cidade, o chão aparece de frente, muito próximo. A visão é impactante e o que se vê não é exatamente “a natureza” acolhedora: é o face a face com o primeiro entre os primeiros, com o pressuposto zero, com o chão. Não é terra, não é território, não é terreno, não é solo: é o chão, o fundamento (o que funda, o que inicia, o que tudo sustenta). É a superfície que, silenciosa, contém as profundezas; que numa aparente quietude resguarda as forças que nos prendem à Terra, e outras que fazem a vida emergir como um jorro, de dentro para fora. O chão é a face aparentemente óbvia do desconhecido, custódio das forças que mantém este planeta íntegro e do magnetismo que o faz verdadeiramente chão. 

 

Daqui se vê que a encosta foi cortada para ampliar o terreno, aplainando à força o que antes subia suavemente. E pela dobra repentina – imposta por máquinas desejosas de abrir espaço, de abrir mais e mais espaço –, agora, graças ao vinco forçado, da janela é possível ver o chão à minha frente, e não sob meus pés. E a estranheza que isso me causou de início: uma janela com vista para o chão. A moldura doméstica contrastava com o que vinha do lado de fora, a floresta verde e escura brotando exuberante do chão negro. A grade tímida que foi instalada como fronteira entre o que chamamos “a nossa casa” e o chão vivo da encosta funcionou antes como um convite para adentrar seus cheiros, seus ruídos, sua umidade, para caminhar por seus descaminhos. Afinal, ali ainda era nossa casa. 

 

Um dia, subi pelo chão da floresta: nem trilhas, nem rastros, nem céu, nem direção, mas um corpo a corpo extenuante com aquele que antes apenas as solas dos pés costumavam tocar sem esforço, sem pensar. A  cidade foi desaparecendo junto com toda e qualquer referência, e meu corpo se recobriu da terra escura. O pitoresco se vez sublime; o prazer da “vista” deu lugar ao contato direto com a imponência, com a visão veemente do que antes permanecia invisível. Impossível voltar a ver como antes. 

 

Esta mata pujante que se vê no bairro da Gávea, que se insinua pelas frestas entre os prédios da Rua Marquês de São Vicente, em plena cidade do Rio de Janeiro, se conecta a uma floresta que resiste no meio de uma metrópole de cerca de 6 milhões de habitantes. É uma borda de proteção do Parque Nacional da Tijuca que, por sua vez, configura um belíssimo fragmento da Mata Atlântica da cidade, que abriga  centenas de espécies vegetais em seus cerca de 4.000 hectares de extensão. Distante 0,9 km do limite do parque, a mata que se vê da janela funciona como uma zona de amortecimento, um filtro destinado a minimizar os impactos da ação humana sobre a natureza. No dizer dos biólogos, ela é um fragmento de Floresta Ombrófila Densa, provavelmente já tocada pela mão humana. 

 

E esse chão da minha casa um dia foi mata, e se tornou minha casa quando a mata foi forçada a recuar. Ele tem uma história que se soma às biografias de incontáveis pedaços de chão, compondo um atlas biográfico sem começo e sem fim. Hoje esse pedaço se chama “minha casa”, mas uma força desconhecida ainda mora aqui, obstinada.

Foto: Victor Vaccari

Foto: Victor Vaccari