Mazagão

Mariane Cardoso, Ana Luiza Nobre e David Sperling

Mazagão, AP, Brasil

0°6'56" oeste e 51°17'10" sul.

Pode uma cidade atravessar o oceano, erguer-se sobre outro chão, renomear-se no mapa e continuar a mesma?

Publicado em
30/09/2022

Atualizado em
02/12/2022

I

A primeira Mazagão é uma cidade missionária. Uma fortaleza cristã construída no Marrocos no século XVI. Seus habitantes são principalmente soldados da fé e suas famílias. Há também artesãos, agricultores, escravos. Nasceu guerreira, resistindo por mais de 200 anos, até que a coroa enxergasse a colonização dessas terras como custosa e inviável. Um cerco de 120 mil soldados mouros foi o estopim para que D. José I ordenasse a evacuação definitiva da fortaleza. Começava a jornada de Mazagão. 

II

A segunda Mazagão é uma cidade flutuante. Em 1769, ela foi repartida e embarcada em 14 naus a balançarem na correnteza oceânica. As famílias não sabem para onde vão, mas a cidade está com elas, está nelas. Que missão as aguarda agora? Os muros robustos adquirem contornos líquidos. As sentinelas, as manufaturas, as plantações não pertencem àquele arranjo. Existem memórias da fortaleza, mas elas parecem se diluir com a espuma. 

III

A terceira Mazagão é uma cidade de papel. Durante o intervalo da viagem oceânica, Mazagão descansa em Lisboa. Lá, se transforma em listas, inventários, pilhas de documentos. A administração da coroa trata de contabilizar seus habitantes e registrar suas condições e deveres. Ministros e cartógrafos riscam mapas, e sobre eles Mazagão redefine as fronteiras das possessões portuguesas como uma peça de xadrez. 

IV

A quarta Mazagão é uma cidade dispersa. Cansada de esperar, Mazagão chega a Belém, na então Amazônia portuguesa. É ainda uma cidade do porvir, o renascimento paira em seu horizonte. Os mazaganenses não sabem seu destino final, quando ele chegará, se o querem, ou se há meios de escapar. Nesse entreato, a vida acontece. Em Belém, as pessoas se casam, trabalham, têm filhos, escondem-se, são enterradas, embaralhando uma cidade na outra.

V

A quinta Mazagão é uma cidade colonizadora. As ordens da coroa indicam sua localização precisa, na margem norte do rio Amazonas. Canoas indígenas levam os habitantes, os mantimentos e os materiais de construção até o que hoje conhecemos como Amapá. Nova Mazagão é reconstruída por indígenas. O enlace tropical redesenha a planta da fortaleza marroquina. Os antigos soldados da fé são agora colonizadores e sua ocupação asseguraria as fronteiras amazonenses aos portugueses.

VI

A sexta Mazagão é uma cidade infernal. Doenças abatem os habitantes. O chão úmido faz apodrecer as casas. A incompatibilidade da cidade com a selva densa ameaça os dias. Mazagão não se enxerga nela mesma. Uns fogem, outros morrem. Logo o palimpsesto reconstruído é abandonado completamente.

VII

A sétima Mazagão é uma cidade cíclica. Fadada ao deslocamento, ela também faz movimentos de retorno. Muitos remanescentes, mestiçados entre indígenas, negros e lusos, retornam à cidade, que agora chamam de Velha Mazagão. Nos tradicionais festejos de São Tiago, reencenam a batalha entre mouros e cristãos, voltando assim à antiga fortaleza marroquina e ao momento em que a diáspora da cidade começou.

Um harém de um ministro mouro embarcando em Mazagão. (1)

Um harém de um ministro mouro embarcando em Mazagão. (1)

Cidade de El Jadida, em Marrocos, antiga Mazagão. (2)

Cidade de El Jadida, em Marrocos, antiga Mazagão. (2)

Festa típica de Mazagão Velho. Foto: Márcia do Carmo. (3)

Festa típica de Mazagão Velho. Foto: Márcia do Carmo. (3)

Artilheiro em El Jadida. (4)

Artilheiro em El Jadida. (4)