Manto Tupinambá
Célia Tupinambá
Paris, IDF, França
48°51'40" leste e 2°17'53" norte.
Publicado em
13/09/2022
Atualizado em
26/10/2022
Recentemente eu tive um sonho. Saíram vários guerreiros, vestidos com mantos de peles de animais. Homens gigantes que saíram vestidos indo para outra serra. Eles me viram e eu me senti pequena diante do tamanho deles, como uma criança. Eles me chamaram para ir com eles e eu fui. Quando chegamos do outro lado da serra, tinha um painel enorme de teia de aranha. Cada um deles trazia uma palha de Jussara. Eles perguntaram se eu queria ver e eu vi que tinham três mantos, dois já cobertos e um de pele de animais que eles estavam cobrindo.
Eu não sei o que vem a ser esse sonho, mas os Encantados estavam me conduzindo para a proteção desse manto e para o que o Manto vem falando. Eu estou nessa missão para a qual o Manto me chamou. Em 2018, no Museu do Quai Branly, eu vi o Manto pela primeira vez. Aquele Manto falou comigo, eu senti uma energia muito forte das mulheres, das nossas ancestrais que produziram aquele Manto. O Manto me mostrou imagens dele sendo confeccionado e eu entrei em “cosmoagonia”, porque eu estava no tempo presente vendo imagens de um passado longínquo, diante de um artefato sagrado do meu povo usado em cerimônias.
Eu desci vários elevadores, várias portas, várias grades, passei por guardas e conferência de documentos para chegar naquela porta. Naquela porta tinha alguém me esperando e me conduzindo. A segunda imagem que eu vi era alguém levando o Manto, entrando numa embarcação e sumindo no horizonte. A terceira imagem era o Manto descendo num cais, entrando numa rua e desaparecendo. Eu nunca tinha lido nada sobre o Manto Tupinambá, só tinha ouvido os cantos sobre ele na aldeia.
Em 2000, o Manto que estava na Dinamarca veio ao Brasil. Nós estávamos em um levante pelo reconhecimento da existência Tupinambá, porque fomos colocados como extintos. A mãe da cacica Tupinambá do território de Olivença reconheceu que aquele era um Manto Tupinambá e disse que o queria de volta. É o primeiro chamado de repatriamento do Manto, o que nos deu visibilidade internacional e ajudou no nosso reconhecimento.
Em 2006 eu fiz o primeiro Manto para os Encantados. Eu pedi aos Encantados para resgatar a tradição do meu povo, ele disse: “tudo a seu tempo”. Depois que eu conversei com o Manto em Quai Branly, comecei a fazer outro Manto para o cacique Babau receber o título de Honoris Causa. Eu errei muito, mas o Manto me conduzia. O Manto pediu para ser feito, não fui eu que quis fazê-lo. Eu pedi para minha avó me ensinar o ponto do jererê, mas ela disse que, como eu tinha sonhado com o Manto, eu já sabia fazer. Então, eu desenvolvi o Manto com um fio único. Não sei como, fui conduzida pelos sonhos. Quando me perguntam porque esse manto não tem as penas de Guará, como os outros, eu digo que não sou eu que faço o Manto, eu sou as mãos que possibilitam ele existir. A vontade é dele, não é minha.
São onze Mantos Tupinambás em toda a Europa. Eu não peço o repatriamento desses mantos. Porque o velho mundo deixou para a gente canhões, rastros de sangue e escravidão indígena.
Os Mantos são o que há de mais puro do nosso povo. Ao invés de deixarmos para eles sangue e canhões, nós deixamos o que era mais sagrado. Como provar nossa pegada na Europa ou nossa contribuição nas revoluções européias, se nós não somos o povo da escrita? Para provar estão os onze Mantos preservados há mais de 600 anos nas costas deles. Eles estão condenados a cuidar das nossas pegadas, da nossa cultura. Para mim, os Mantos devem ficar lá, porque também conquistamos o velho mundo. A Europa pertence ao Brasil. Custa caro preservar as penas frágeis por tantos anos. Trazer de volta seria perdoar o que eles fizeram; eu deixo lá e digo que eles precisam garantir que eu chegue até o Manto. Eu exijo auxílio e passagem aérea para ter acesso a essa entidade.
Recentemente o Cacique Babau recebeu um chamado de que ele não poderia mais usar o cocar. A partir de agora, ele só aparecerá coberto pelo Manto, e onde ele for, estará também a mata, a floresta e as abelhas. Não será ele falando, mas todo o território falando também. O Manto precisa ser ecoado, ele precisa falar. Quando eu vejo a malha do Manto, eu vejo o céu indígena.
(Transcrição e edição autorizada pela autora da fala de Célia Tupinambá no Seminário “1822-2022: a escrita do futuro” do Departamento de História, PUC-Rio, realizado entre 6 e 9 de junho de 2022)
Depoimento de Glicéria Tupinambá
O manto tupinambá volta a sua terra de origem • RFI Brasil
Exposição 'Essa é a grande volta do manto tupinambá' - Visita guiada
Seminário 1822-2022: a escrita do futuro - Célia Tupinambá - Para o manto existir, o território precisa existir (09 de junho)
Referências
CAPUCHINHO, Cristiane. "A volta do manto tupinambá: como indígenas da Bahia retomaram peça sagrada que só era vista na Europa". 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/10/15/a-volta-do-manto-tupinamba-como-indigenas-da-bahia-retomaram-peca-sagrada-que-so-era-vista-na-europa.ghtml. Acesso em: 05 jul. 2022.
ROXO, Elisangela. Longe de casa: O fascínio, a dor e os equívocos em torno dos mantos tupinambás na Europa. 2021. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/longe-de-casa-2/. Acesso em: 5 jul. 2022.
Fonte das Imagens
Imagem 1:Manto Tupinanbá na reserva técnica do Museu de Quai Branly, em Paris, França.
Foto : Livia Melzi
Fonte: https://revistazum.com.br/revista-zum-21/a-visao-do-manto/
Imagem 2: Detalhe da costura do Manto Tupinanbá mantido no Museu de Culturas de Basiléia, na Suiça
Foto : Museu de Culturas de Basiléia/ Fotógrafo desconhecido
Fonte: https://revistazum.com.br/revista-zum-21/a-visao-do-manto/
Imagem 3: Manto Tupinanbá no Museu Real de Arte e História de Bruxelas, Bélgica.
Fotos: Wikimedia Commons
Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br/revisitando-e-expondo-o-passado/
Imagem 4: Candinha e Mariazinha Korihana thëri limpam mutum, na qual as penas são utilizadas para emplumar flechas, Catrimani, Roraima, 1974
Foto : Claudia Andujar
Fonte:http://www.belasartes.br/criar/cultura/exposicao-a-luta-yanomami-por-claudia-andujar/attachment/foto-de-claudia-andujar/
Imagem 5: Imagem de gravura de homem e mulher indígena usando manto tupinanbá, 1572.
Ilustração : Hans Weigel e Jost Amman
Fonte: https://revistazum.com.br/revista-zum-21/a-visao-do-manto/
Imagem 6: Dança com Manto Tupinanbá feito por Glicéria Tupinanbá
Foto: Fernanda Liberti
Fonte: https://www.premiopipa.com/gliceria-tupinamba/