Grito do Ipiranga
Mariane Santana, Ana Luiza Nobre e David Sperling
SP, Brasil
23°35'8" oeste e 46°36'34" sul.
Publicado em
05/09/2022
Atualizado em
06/09/2022
A imagem produz o real. Confere significado estético à história. Fabrica mundos e apaga outros.
Às margens do riacho Ipiranga, montado em um possante cavalo, cercado de sua comitiva e empunhando vigorosamente uma espada, D. Pedro efetuou o gesto inaugural da independência do Brasil, a 7 de setembro de 1822. A imagem idealizada da independência brasileira foi cuidadosamente construída por Pedro Américo, um dos mais célebres pintores brasileiros do século XIX, a quem foi encomendado o emblemático quadro “Independência ou morte!”. Longe de ser um documento histórico, a famosa tela monumentaliza o momento em que o então príncipe regente montava de fato uma mula, trajava uma farda comum e estava em péssimo estado de saúde. E mais: foi pintada quatro décadas depois do episódio representado, na cidade italiana de Florença, e chegou ao Brasil em 1888. Num momento estratégico, portanto, para tentar salvar a monarquia de uma decadência que culminaria com a proclamação da República, no ano seguinte.
Fazer da figura de D. Pedro um herói foi um projeto político. O Brasil Império nasceu como um ponto fora da curva, rodeado por repúblicas nas Américas. Nesse caso singular, a dita emancipação chegara não apenas com a monarquia, mas com um monarca português, e da casa de Bragança. Uma emancipação associada portanto à preservação da mesma elite política, econômica e intelectual que dominava o Brasil há séculos.
Na cena mitificada por Pedro Américo, o “povo heróico” aparece como mero espectador, nas bordas da tela. E tudo ocorre numa topografia imaginária, que eleva o chão para destacar o protagonista e conferir grandiosidade ao seu “brado retumbante”.
A tela de mais de 30 m2 foi exposta ao público brasileiro apenas em 7 de setembro de 1895, na inauguração do Museu Paulista, onde ocupa até hoje uma parede especialmente projetada para recebê-la. Chumbada ao edifício-monumento, não saiu de lá nem mesmo quando o prédio foi esvaziado para reforma.
Mais tarde, o regime militar brasileiro resgataria a imagem icônica, espalhando-a em moedas, selos, notas, cartões postais, livros didáticos. Assim arquitetou-se uma narrativa que associava o golpe à restituição da liberdade do país. Uma versão de Brasil à qual não faltavam símbolos e heróis da independência, embalados por um espírito patriótico e pela celebração de um passado idealizado.
A imagem oficial, entretanto, abafa muitos outros gritos de independência que já se ouviam na época e ecoam ainda hoje.
“Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.” (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 2).
Referências
BRASIL. Anais do Parlamento Brasileiro, sessões de 23/06/1848 e 27/06/1848. Brasil. Manifesto de 6 de Agosto de 1822. Coleção Leis do Império, vol. 1, 132.
MACHADO DE ASSIS, José Maria. Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade. In: ____. Obra completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Vol. III.
SCHLICHTA, Consuelo Alcioni B. D. Independência ou morte (1888), de Pedro Américo: a pintura histórica e a elaboração de uma certidão visual para a nação. In: ANPUH – XXV Simpósio Nacional de História. Anais... Fortaleza, 2009.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sequestro da Independência. Revista USP, v. 1, n. 133, p. 13-32, 2022.
______. Quadro da independência serviu aos militares. Poder 360, on-line, 15 de Maio de 2022. Disponível em: . Acessado em 25 Ago. 2022.