Caminho da Bahia
Mariane Cardoso, Ana Luiza Nobre e David Sperling
BA, Brasil
12°34'45" oeste e 38°1'48" sul.
Publicado em
22/09/2022
Atualizado em
02/12/2022
Um descaminho não existe por si só. Ele existe em referência e oposição à sua outra face, o caminho. Forjado nessa essência dúbia, o Caminho da Bahia foi o mais importante descaminho do Brasil-colônia. Recebeu muitos nomes, como “Caminho do Rio São Francisco”, “Caminho da Cidade de Salvador para as minas do Rio das Velhas”, “Caminho dos Currais” e “Caminho Geral do Sertão”. E tanto quanto diferentes nomes, exerceu diferentes funções.
Com a descoberta das grandes jazidas das Minas Gerais e a exploração de ouro e diamantes a partir do século XVII no Brasil, controlar as rotas de escoamento dessas riquezas até os postos litorâneos era essencial para a metrópole portuguesa. Alguns desses trajetos conectavam as minas ao Rio de Janeiro e a São Paulo. No caso do Caminho da Bahia, a rota partia de Salvador, margeando boa parte do Rio São Francisco e seus afluentes. Nas palavras do jesuíta italiano André Antonil,
“este caminho da Bahia para as minas é muito melhor que o do Rio de Janeiro e o da vila de São Paulo, porque posto que mais comprido, é menos dificultoso, por ser mais aberto para as boiadas, mais abundante para o sustento e mais acomodado para as cavalgaduras e para as cargas. ” (ANTONIL, 2011 [1711], p.254)
Por esse percurso, circulavam principalmente rebanhos de gado e tropas de mercadores que abasteciam a região das Minas com a produção agrícola interna e artigos europeus, além de comboios de escravos, cuja mão-de-obra era cada vez mais demandada nas lavras de ouro. No entanto, a trilha era também repleta de entroncamentos e atalhos paralelos, brechas que acolhiam indígenas e africanos fugitivos da escravidão e dificultavam a fiscalização da Coroa.
Na disputa pelo controle da arrecadação fiscal, a abertura do Caminho Novo da Estrada Real, que encurtou a distância entre as minas e o Rio de Janeiro, garantiu a centralidade dessa capitania. Junto a isso, a partir de 1701, sucessivas interdições régias proibiram o trânsito de quaisquer mercadorias que não fossem o gado no Caminho da Bahia. No entanto, ele jamais deixou de ser utilizado. Pelo contrário, a proibição o transformou em principal via de contrabando de ouro, porque ali se driblava o pagamento do “quinto” – o tributo pago pelo colonizado ao colonizador, correspondente a 20% do metal extraído.
Muito ouro escapou pelo Caminho da Bahia, enquanto a rede clandestina seguiu seu curso paralelo, ainda melhor que o curso oficial pois ali os lucros eram livres de tributo. Caminho e descaminho em correspondência mútua, a espelhar o nexo colonial que marca profundamente o Brasil. “São dois mundos em um, como é peculiar à dinâmica sistêmica colonial. […] entre o caminho e o descaminho, entre o lícito e o ilícito, entre uma sociedade estamental e sua respectiva subordem de castas, opera-se a construção da América” (JUNIOR, 2007, p. 17).
Referências
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011 [1711].
CALAES, Gilberto Dias; OLIVEIRA, Laíce Calaes [Eds.]. A Estrada Real e a transferência da corte portuguesa: programa RUMYS, projeto estrada real. Rio de Janeiro: CETEM/MCT/CNPQ/CYTED, 2009. 228 p. Disponível em: . Acessado em 19 Mai. 2022.
CAMINHO da Bahia. Memória do Transporte Brasileiro, [on-line], 2021. Disponível em: . Acessado em 21 Mai. 2022.
JUNIOR, Paulo Cavalcante de Oliveira. Negócios de Trapaça: caminhos e descaminhos na América Portuguesa (1700-1750). Tese (Doutorado em História Social – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
LAMAS, Fernando Gaudereto. Para além do ouro das Gerais: outros aspectos da economia mineira no setecentos. HEERA - Revista de História Econômica & Economia Regional Aplicada, v. 3, n. 4, pp. 37-54, Jan-Jul 2008.
LEMKE, Maria. O Caminho do Sertão: notas sobre a proximidade entre Goiás e África. Politeia: História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 13, n. 1, pp. 115-132, 2013.
OLIVEIRA, Enio Sebastião Cardoso de. Caminhos e Descaminhos: O processo de ocupação da região ao sul do Vale do Paraíba Fluminense e os Índios Puris na ordem colonial. In: XVII Encontro de História da Anpuh. Anais... Rio de Janeiro, 8 a 11 de Ago., 2016. Disponível em: http://www.encontro2016.rj.anpuh.org/resources/anais/42/1464917059_ARQUIVO_CaminhoseDescaminhoIndiosdeCampoAlegre.pdf>. Acessado em 22 Mai. 2022.
Imagem 1 e 2: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_Bahia
Imagem 3: https://www.guiachapadadiamantina.com.br/caminhos-reais/
Imagem 4: https://forum.openstreetmap.org/viewtopic.php?id=56566&p=3
Imagem 5: https://issuu.com/cbhriodasvelhas/docs/o_caminho_dos_currais_do_rio_das_ve
Imagem 6: https://www.bahianoiteedia.com.br/na-bahia-tem-uma-igreja-de-ouro-bem-ali-no-terreiro/