Cais do Valongo (EN)
Daniel Lavinas e Ana Luiza Nobre
RJ, Brasil
22°53'47" oeste e 43°11'13" sul.
Publicado em
25/10/2021
Atualizado em
29/08/2022
O chão de uma cidade é feito de muitas camadas. Em algumas essas camadas são visíveis por todo o lado, particularmente em ruínas milenares que ficam metros abaixo do nível da rua. Mas no Rio de Janeiro isso não é tão evidente. Parte fundamental da história da cidade permanece enterrada. E em nenhum outro lugar da cidade a brutalidade da escravidão é tão gritante e tão pública quanto no Cais do Valongo.
Suas origens remontam ao séc XVIII, quando o Vice-Rei Marquês do Lavradio determinou que todo o complexo relacionado ao comércio de escravos (incluindo desembarcadouro e mercado) fosse removido do centro da cidade, onde provocava desconforto e constrangimento às elites. O local escolhido foi o Valongo, entre a Pedra do Sal e a Gamboa, a alguns quilômetros do Terreiro do Paço (atual Praça XV), epicentro da cidade.
O aumento do comércio de escravos levou à construção da estrutura de pedra em 1811, três anos depois da chegada da Corte portuguesa no Brasil e 11 antes da Independência. Ninguém sabe ao certo quantos pés desembarcaram ali. Mas o número pode chegar a um milhão de africanos escravizados, o que faz do Cais do Valongo o maior porto escravagista do mundo.
Com a proibição da importação de escravos, em 1831, esse movimento diminuiu, embora o comércio de cativos tenha continuado de forma clandestina a partir do desembarque em praias mais afastadas.
O mesmo atracadouro serviria a uso muito distinto, pouco depois: o desembarque da princesa das Duas Sicílias, Tereza Cristina Maria de Bourbon, que iria se casar com D Pedro II e tornar-se imperatriz do Brasil. Para recebê-la, o primeiro cais de pedra foi recoberto, remodelado e rebatizado em 1843, com o nome pomposo de Cais da Imperatriz e novo calçamento. No início do século XX, com as obras de modernização do porto iniciadas pelo Prefeito Pereira Passos, tudo isso foi aterrado, afastado 300 de metros da água, e ficou perdido por um século. Até que as obras de reestruturação urbana impulsionadas pelas Olimpíadas de 2016 revelaram uma pedra, outra, um degrau… e entre colares, botões, amuletos e búzios ressurgiram vestígios importantes da história da escravidão no Brasil. O cais de duas camadas ressurgido por acaso do asfalto – e por pouco não enterrado de novo – tornou-se ponto central do chamado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, um roteiro a ser feito a pé que inclui a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos, os Jardins Suspensos do Valongo, o Centro Cultural José Bonifácio e o Largo do Depósito.
Seu reconhecimento como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em 2017, não foi suficiente, porém, para assegurar a valorização, pelo poder público, do que foi enterrado e silenciado ali. Na ausência de um projeto de drenagem adequado, por exemplo, os alagamentos no sítio arqueológico são frequentes. Como se a água insistisse em voltar a banhar as pedras que um dia mergulhavam na Baía de Guanabara e foram sendo afastadas pelos sucessivos aterros na região.
O chão de pedra do Cais do Valongo, no entanto, resiste a todos esses apagamentos, como uma das camadas mais profundas da cidade, memória concreta da violência sistêmica enraizada no que hoje chamamos de Brasil.
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Valongo Wharf
City grounds are multilayered. Some such layers are visible everywhere, particularly in the age-old ruins that lie a few meters below street level. But this is not so evident in Rio de Janeiro. A crucial part of the city’s history remains buried. And nowhere else in the city is the brutality of slavery as blatant and public as in the Valongo Wharf.
Its origins hark back to the 18th century, when Vice King Marquis of Lavradio ruled that the entire slave trade complex (wharf and market included) be removed from downtown, lest it bother and embarrass the elite. The chosen site was the Valongo, between Pedra do Sal and Gamboa, a few kilometers from Terreiro do Paço (now Praça XV), the city’s epicenter.
Booming slave trade prompted the construction of the stone structure in 1911, three years after the arrival of the Portuguese Court in Brazil, and 11 years prior to Independence. No one knows for certain how many feet touched the ground here, but the number could be as high as 1 million enslaved Africans, meaning Valongo Wharf was the biggest slave port in the world.
The flow was stemmed by the 1831 ban on slave imports, although the trade in captives went on clandestinely, with ships docking on further beaches.
The same wharf would serve a very distinct purpose not long after: the arrival of the Princess of Two Sicilies, Tereza Cristina Maria de Bourbon, who was due to marry D Pedro II and become the empress of Brazil. To welcome her, the stone wharf was recoated, remodeled and pompously rebaptized in 1843 as the freshly-paved Empress’ Wharf. In the early 20th century, with port modernization works initiated by Mayor Pereira Passos, the entire area was reclaimed and set back 300 meters from the water. It remained lost for a century as a result, until urban restructuring work prompted by the 2016 Olympics revealed a stone, then another, then a stairstep… And amid necklaces, buttons, amulets and cowry shells, there reemerged important vestiges of the history of slavery in Brazil. The double-layered wharf which resurfaced due to asphalt-laying – and barely escaped getting buried again – became a central point to the so-called African Heritage Celebration Historical and Archaeological Circuit, a hiking trail including Pedra do Sal, the New Blacks’ Cemetery, the Valongo Hanging Gardens, José Bonifácio Cultural Center, and Largo do Depósito.
The site’s listing as UNESCO World Heritage in 2017, however, did not suffice to ensure that authorities would cherish what’s buried and silenced here. Without a proper drainage project, for instance, flooding is frequent at the archaeological site. It’s as though the water insisted in once again bathing the stones that used to dip into Guanabara Bay and have since been driven away by repeated reclamations in the area.
The stone floor at Valongo Wharf, however, resists all these erasures as one of the deepest layers of the city, a concrete memory of deep-rooted systemic violence in what we now know as Brazil.
Referências
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Tâmara. Patrimônio da Humanidade, o Cais do Valongo, RJ, aguarda revitalização.
2021. Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2021-05/patrimonioda-humanidade-o-cais-do-valongo-rj-aguarda-revitalizacao. Acesso em: 16 out. 2021.
IPHAN. Sítio Arqueológico Cais do Valongo. Proposta de inscrição na lista do Patrimonio
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http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Cais_do_Valongo_versao_Port
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NOBRE, Ana Luiza. Cais do Valongo. 2012. Disponível em:
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Acesso em: 14 out. 2021.
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https://www.portomaravilha.com.br/caisdovalongo. Acesso em: 20 out. 2021.
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em: https://prefeitura.rio/cultura/prefeitura-celebra-a-10a-lavagem-do-cais-do-valongo/.
Acesso em: 19 out. 2021.
ROSA, Thaís. Cais do Valongo: o que foi na história do Brasil? 2020. Disponível em:
https://www.politize.com.br/cais-do-valongo/. Acesso em: 18 out. 2021.