Morro da Garça

Érico Melo

MG, Brasil

18°34'35" oeste e 44°37'1" sul.

Ali, o caminho esfola em espiral uma laranja: ou é a trilha escalando contornadamente o morro, como um laço jogado em animal. Queriam subir, e ver. [...] Lá – estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide. (ROSA, 1956a.)

Publicado em
30/09/2022

Atualizado em
02/12/2022

O Morro da Garça é uma espécie de pirâmide de pedra que se destaca agudamente na paisagem do vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais, onde predominam as planuras e chapadas típicas da província São Francisco. 

O morro constitui uma exceção antiquíssima à juventude geológica dos terrenos coluvionais que recobrem aquela parte da bacia. “Solitário, escaleno e escuro”, ele fornece um testemunho eloquente de eras priscas da formação da Terra, remontando ao Neoproterozoico (750-650 milhões de anos atrás). Naquele período glacial, calcários, arcóseos,  siltitos  e argilitos característicos do grupo Bambuí e, em especial, do subgrupo Paraopeba  depositaram-se sobre o arcabouço cristalino do bloco Brasília e originaram as formações Lagoa do Jacaré, Serra da Saudade e Três Marias. Nessa ordem, de baixo para cima, essas rochas sedimentares estruturam o cerne do morro, demonstrando num ponto concentrado do espaço a estratigrafia de todo o vale do São Francisco em sua vertente mineira.

A presença marcante do Morro da Garça é notada por todos os viajantes que atravessam a região. Com quase mil metros de altitude em relação ao nível do mar, pode-se avistá-lo a muitas dezenas de quilômetros de distância. Entre Pirapora e Curvelo, sua corcova sobranceira se apresenta insistente ao olhar. Trata-se de uma região historicamente dedicada à pecuária extensiva, palmilhada desde o século XVIII pelos tropeiros e boiadeiros que subiam das terras baixas da Bahia ou desciam das serras mineiras para o Velho Chico. Nessas travessias sertanejas, o marco triangular do morro funcionava como uma baliza segura para as comitivas através dos caminhos sinuosos das veredas e chapadas. 

Sempre atento aos saberes dos viajantes do sertão, João Guimarães Rosa (1908-1967) transformou o morro da Garça em um dos principais personagens de Corpo de baile, ciclo de sete novelas publicado em 1956 – nas vésperas do concurso urbanístico para a nova capital federal. O ficcionista mineiro – que nasceu a menos de 70 km do Morro da Garça, em Cordisburgo – tece uma complexa matriz de relações de sentido em “O recado do morro”, texto que ocupa o centro do livro, a partir da presença sibilina dessa pirâmide de pedra na paisagem. Uma mensagem emanada da “antena” litológica do morro deflagra uma sequência de acontecimentos fortuitos que, no final da estória, resulta na composição de uma cantiga alusiva à natureza da arte da ficção. A montanha cantante orienta os olhos e vozes que povoam o espaço rosiano na direção da alegoria e do enigma, apontando obliquamente para a irmandade primordial entre Corpo de baile e Grande sertão: Veredas, que se constela entre a geografia, a história e a ficção.

Foto: Érico Melo

Foto: Érico Melo

Foto: Érico Melo

Foto: Érico Melo