Restaurante Calabouço
Daniel Lavinas, Ana Luiza Nobre e David Sperling
RJ, Brasil
22°54'40" oeste e 43°10'9" sul.
Publicado em
31/08/2022
Atualizado em
02/12/2022
Sob o som dos talheres e das conversas, os estudantes do Restaurante Calabouço resistem, a contragosto do Governo Militar. O epicentro da luta estudantil contra o regime herda o nome da Prisão do Calabouço, lugar de castigos e reclusão de escravizados no período colonial. Também herdeiro do nome é o prolongamento de terra sobre o mar aos pés do antigo Morro do Castelo, a Ponta do Calabouço, onde se localizava o restaurante e o cárcere. A prisão, desativada em 1838, já não pode ser vista na paisagem da cidade, e hoje só restam especulações sobre sua exata localização, sob o Museu Histórico Nacional que ocupa o edifício remodelado para abrigar um pavilhão, ao estilo “neocolonial”, para a Exposição comemorativa do Centenário da Independência. Por conta dos inúmeros aterros feitos no centro da cidade do Rio de Janeiro, a península sobre a Baía de Guanabara, também já não existe.
Camadas de terras e camadas de histórias se sobrepõem nesse ponto de múltiplas coordenadas composto pelo Restaurante Calabouço, centro de amparo a estudantes secundaristas, que funcionou de 1951 a 1968. Nesses 17 anos, ele teve três sedes diferentes: a primeira no edifício da União Nacional dos Estudantes (UNE), onde ficou por apenas um ano. A segunda na Av. Infante Dom Henrique, onde se instalou o Complexo do Calabouço, que além do restaurante, abrigava uma policlínica, um auditório e uma pequena galeria comercial destinada aos estudantes. Nesse endereço, o restaurante permaneceu até 1967, antes de ser demolido para dar espaço para construção da ligação da pista do aterro do Flamengo com o aeroporto Santos Dumont, realizada para a chegada da comissão do Fundo Monetário Internacional – FMI, aguardada para uma reunião no país. Com a demolição, também se tentava pôr fim ao lugar que propiciava o encontro entre os estudantes e sua união numa entidade de defesa da liberdade.
Diante da pressão dos estudantes, o governo entregou uma terceira sede, meses depois da demolição. Isso deu uma uma curta sobrevida ao Restaurante, que permanece na memória de todos que frequentaram aquele espaço de troca estudantil. O Calabouço viveu sua última batalha em 28 de março de 1968, quando fechou as portas permanentemente, após o confronto que vitimou o estudante Edson Luís, um dos maiores símbolos da repressão às manifestações estudantis. Sua morte resultou, em junho de 1968, na marcha dos 100 mil, uma das maiores passeatas a favor da democracia e última antes da instituição do AI-5, em dezembro do mesmo ano.
O restaurante cativou seus usuários menos pela qualidade da comida que pelas trocas que o espaço favorecia. O refeitório entrou para história como uma assembleia estudantil, e a praça em frente foi apelidada pelos estudantes de “Território Livre da América”. Na mesma praça foi improvisado um palanque com uma grande pedra, retirada de uma obra no entorno, que servia para discursos e julgamentos de militares e policiais capturados durante confrontos. O palanque era marcado por uma grande manilha de concreto, transportada pelos estudantes até o local, que em dias de manifestação era incendiada formando uma grande pira, simbolizando que o Calabouço estava em guerra.
Separados cronologicamente por mais de um século, cárcere e restaurante, se aproximam, assim, em muitos sentidos. Ambos fazem parte do histórico de repressão, violência e cassação das liberdades no Brasil. E ambos dizem respeito a histórias sistematicamente invisibilizadas e sobrepostas no território. O local do segundo, dos três endereços do restaurante, hoje é ocupado por uma grande alça de trânsito, sarcasticamente nomeada de “Trevo dos estudantes”.
Calabouço - Um tiro no coração do Brasil.
Referências
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/nota-sobre-o-calabouco/
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/414928/noticia.htm?sequence=1
https://extra.globo.com/noticias/brasil/palco-de-resistencia-em-68-restaurante-do-calabouco-foi-palco-de-manifestacoes-historicas-contra-ditadura-479327.html
https://riomemorias.com.br/memoria/prisao-do-calabouco/
Imagem 1: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/restaurante-do-calabouco-22474195
Imagem 2: https://acervo.oglobo.globo.com/incoming/missa-de-7-dia-de-edson-luis-22490272
Imagem 3: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/morte-do-estudante-edson-luis-em-1968-deflagra-protestos-no-pais-contra-ditadura-22470751
Imagem 4: https://diariodorio.com/historia-do-quadro-grande-panorama-do-rio-de-janeiro/
Imagem 5: https://riomemorias.com.br/memoria/prisao-do-calabouco/